Opressão, coletividade e resistência: Boa Esperança, de Emicida


Opressão, coletividade e resistência: a “Boa Esperança” de Emicida

Por Sofia Rodrigues Bolina

1.     Introdução

Na coleção de poemas Cidadã: Uma Lírica Americana[i], a jamaicana Claudia Rankine pondera sobre as muitas nuances do que significa ser uma pessoa de cor[1], discutindo micro agressões[2], perfilamento racial e a forma como negros são percebidos no dia-a-dia. Entre seus versos encontra-se um ensaio em prosa, que a artista inicia expondo seu ponto de vista sobre a série de vídeos Art Toughtz, do Youtuber Hennessy Youngman. Neste ensaio, a autora reflete sobre como, em um de seus vídeos[3], Youngman (2011) recomenda que artistas negros façam uso da raiva para produzir ‘arte de sucesso’ (Rankine, 2015, p. 23). Para ela, “a raiva comodificada que seu vídeo defende é superficial, servindo ao espetáculo”[4] e pode se relacionar apenas a uma performance de negritude ao invés de um sentimento verídico. Rankine prossegue:

Na transição entre esta raiva mercantilizável e “o artista” reside, às vezes, uma raiva autêntica. Em seu vídeo, Youngman não aborda este [segundo] tipo […]: a raiva acumulada através da experiência e das lutas cotidianas contra a desumanização que cada pessoa parda ou preta[5] vive simplesmente por causa da cor de sua pele. Com o tempo, este outro tipo de raiva pode impedir, ao invés de incentivar, a produção de qualquer coisa que não seja solidão.

Você começa a pensar, talvez erroneamente, que este outro tipo de raiva é na verdade uma forma de conhecimento: do tipo que tanto esclarece quanto frustra. Ela responde a insultos e tentativas de apagamento simplesmente ao afirmar presença, e a energia necessária para apresentar, para reagir, para afirmar, é acompanhada de uma frustração visceral: uma frustração no sentido de que visibilidade nenhuma alterará a maneira como alguém é percebido[6] (Ibid., p. 24).

Ao ler isso, pensei imediatamente no trabalho do rapper brasileiro Emicida, já que grande parte de sua obra aborda vivências negras[7] no país e temas como trauma, racismo, cultura e história afro-brasileiras e a revolta contra o status quo da branquitude. Ao encontrar as palavras de Rankine, tive de lembrar das de Emicida, e foi assim que este trabalho originou-se: me perguntei qual seria o papel da raiva em suas letras e videoclipes, visto que ambos conjuram um tipo de resistência que parece vir do conhecimento sobre o qual a poetisa escreve. A obra do rapper, que poderia ser considerada uma espécie de poesia que luta contra a opressão, parece reconhecer que “manter o conforto público requer que certos corpos ‘se alinhem a ele’. Recusar-se a fazê-lo, recusar o local em que se é colocado, é ser visto e compreendido como um problema, como aquilo que causa desconforto aos outros”[8] (Ahmed, 2010, p. 68-69). É exatamente isso que Emicida, um dos mais célebres rappers do Brasil, invoca em sua arte, recusando a alinhar-se com o que a elite patriarcal e branca considera sobre e em oposição aos negros.

Sendo assim, este trabalho propõe-se a examinar dois aspectos. Em primeiro lugar, de que maneira resistência é um elemento central na obra de Emicida. Em segundo lugar, como a forma através da qual o artista se expressa também expõe e combate as injustiças cotidianas sofridas pelos negros brasileiros. Para isso, um objeto artístico específico da trajetória do rapper será utilizado como material para a análise audiovisual feita a seguir: o videoclipe de Boa Esperança, a décima faixa do segundo álbum de estúdio de Emicida, intitulado Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, lançado em 2015 e indicado ao Grammy Latino.

Antes de explorarmos o clipe, é necessário fazer contextualização do rap brasileiro e das realidades históricas e sociais da população negra no Brasil. Depois disso, analisarei a música, o vídeo e a performance audiovisual em Boa Esperança, entrelaçando tais reflexões com as teorias de Paulo Freire, Grada Kilomba e Sara Ahmed, que lidam com opressão, negritude, racismo e otherness[9]. Ressalto também a escolha de iniciar cada capítulo com versos da letra de Emicida que, ao meu ver, ilustram de forma adequada os principais aspectos tratados em cada seção[ii].

2.     Contexto

O tempero do mar foi lágrima de preto

Papo reto como esqueletos de outro dialeto

(Emicida, Nave, & Ghetto, 2015)

O rap brasileiro compartilha de muitos paralelos com seu precursor americano, nascido no Bronx como expressão de vivências negras e latino-americanas na periferia de Nova York (Furtado, 2018, p. 154). O gênero, juntamente com o hip-hop, foi apresentado à juventude negra de São Paulo através da venda de álbuns e filmes americanos e de bailes e festas, nas quais DJs reproduziam clipes com as danças associadas a esse tipo de música (Santos, 2016). Jovens negros “[…] presentes nesses bailes começaram a se organizar em volta de políticas identitárias em locais públicos do centro de São Paulo”, levando a um “movimento de jovens vítimas da violência racial e de classe [na esfera urbana] que serve como instrumento de transformação social através de suas expressões alternativas de estética, cultura e protesto”. Como nos Estados Unidos, o rap e o hip-hop se tornaram uma forma de resistência e revolta contra a exclusão e a opressão da classe marginalizada.

Ainda que os gêneros tenham raízes e projetos comuns no sentido de proporem o protesto contra a injustiça, no Brasil tal música evoluiu e enredou-se à história e à realidade nacional, tornando o trabalho de rappers conhecidos, como Emicida, em uma reflexão complexa sobre raça e classe. Este é o caso de Boa Esperança, que tece uma crítica à situação da população negra no país. Com isso em mente, é importante para esta análise trazer à tona o contexto histórico e social brasileiro.

Transformado em colônia portuguesa após a chegada de exploradores europeus em 1500, o território hoje conhecido como Brasil era habitado por tribos indígenas cujas populações foram, em poucas décadas, dizimadas ou drasticamente reduzidas a números baixíssimos através de práticas genocidas. Então, com o intuito de explorar a terra, cultivando principalmente cana-de-açúcar e minando ouro, o tráfico de africanos escravizados foi iniciado e assim estabeleceu-se o comércio transatlântico de escravos. Das quase doze milhões de pessoas trazidas para o continente americano, cerca de cinco milhões desembarcaram no Brasil (Santos, 2016). A instituição da escravidão, que consiste da tortura e exploração econômica e sexual de corpos negros, foi abolida mais de 300 anos depois, em 1888, 66 anos após a data em que a colônia se tornou o Império do Brasil. Todavia, isso não significa que não houve resistência à violência e à opressão nos períodos pré- e pós-independência. Hoje sabe-se de inúmeros relatos de escravos que conseguiram escapar das plantações – em alguns casos mais raros, até mesmo através da compra ou da concessão de alforria por parte de seus proprietários -, bem como de revoltas e da formação de quilombos, comunidades existentes até hoje.

Pouco mudou após a abolição da escravatura: nenhuma forma de compensação ou reparação foi oferecida aos indivíduos agora livres. Além disso, nenhum tipo de moradia digna, oportunidade de trabalho decente ou acesso adequado à educação e ao sistema de saúde foram concedidos de fato. Hoje, a maioria de seus descendentes vive de modo precário, entre a população mais pobre do país (Gomes, 2018) e constituindo 75,5% dos 65.602 homicídios reportados no ano de 2017 (F. B. d. S. P. IBGE, 2019). Compõem a maioria dos empregados pior remunerados, como trabalhadores domésticos e/ou do setor informal, fazem grande parte da população das favelase são constantemente alvo de violência policial. Já a elite, antes composta por senhores de engenhos, proprietários de minas de ouro, e donos de plantações de café, continua sendo predominantemente branca e desfruta de diversos privilégios, como da infraestrutura de boas escolas e hospitais particulares, vivendo em mansões e edifícios de luxo em condomínios fechados. Considerando tal contexto, o racismo é uma presença inegável no Brasil, embora hoje se manifeste menos através de confrontos diretos[10] e mais como um aspecto ‘disfarçado’ da estrutura social do país, como argumenta a filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez sobre o mito de que a miscigenação levou ao fim da discriminação racial (Pons Cardoso, 2014, p. 969).

Esta é a base a partir da qual a marginalização de onde vem o rap brasileiro surgiu. Entretanto, não se pode esquecer que

[a] margem é um local que nutre nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar e de imaginar mundos alternativos e novos discursos. […] A margem é tanto um local de repressão quanto um local de resistência (hooks, 1990). Ambos os locais estão sempre presentes porque onde há opressão, há resistência. Em outras palavras, a opressão forma as condições de resistência. (Kilomba, 2019, p. 68-69).

Por causa e apesar do fato do presente e passado brasileiros serem racistas, negros resistem, enfrentando estereótipos e seu apagamento histórico, reiterando a relevância das culturas africana e afro-brasileira, e recusando a manutenção da posição de subserviente e oprimido na qual a elite os colocou e ainda os coloca. Como argumentarei na análise a seguir, Boa Esperançaé um exemplo valioso de como isto é feito poderosamente enquanto manifestação cultural.

3.     A música

Favela ainda é senzala Jão

(Emicida et al., 2015)

Composta por um refrão de oito versos que é cantado no início e no final da canção e de outras sete estrofes irregulares, a letra de Boa Esperançafunciona como uma espécie de manifesto, fazendo menção à história e à situação da população negra brasileira. Há uma progressão do conteúdo ao longo da música, considerando a cronologia dos acontecimentos citados (da escravidão à atualidade) e a intensidade de sentimentos – principalmente revolta e raiva – com a opressão contínua vivida por pessoas negras. Além disso, pode-se dizer que o rap tematiza tal situação de maneira mais abrangente, sobretudo em comparação ao enredo do videoclipe, que será examinado no quarto capítulo, já que não foca na trajetória específica de um ‘subgrupo’ da população negra (mulheres negras, membros negros da comunidade LGBT, negros nordestinos, etc.) ou em somente um contexto individual (trabalho informal, migração, violência policial, etc.).

O refrão é repetido três vezes, sendo duas delas logo após o início da música. Na sua primeira metade, a letra parece carregar uma sensação de impotência em relação aos desafios que a comunidade negra tem de enfrentar atualmente. Isso é particularmente enfatizado pelos segundo (“Pra sua guerra vão nem se lixar”) e quarto versos (“Já viu eles chorar pela cor do orixá?”[11]). A outra metade do refrão apresenta uma espécie de justificativa para tal impotência, afirmando que embora a escravidão tenha sido abolida, a diferença no tratamento e realidade da população negra no passado e na atualidade é mínima. Os quinto e sexto versos comparam a violência policial atual com a crueldade infligida aos africanos que foram escravizados; o sétimo verso resume isso – “Favela ainda é senzala, Jão”; e o último destaca como as muitas nuances desse legado e experiência se somam, fazendo da situação uma “Bomba relógio prestes a estourar”.

As três estrofes seguintes referem-se à opressão histórica do indivíduo negro, tematizando a dor e o trauma em ser traficado para o continente americano, em não saber a língua e, consequentemente, em não conseguir se comunicar com outros que também foram sequestrados e escravizados, já que eram provenientes de diferentes territórios e tribos africanas. Ao mesmo tempo em que a letra de Boa Esperança denuncia as péssimas condições nas quais essas pessoas e seus descendentes viveram e vivem (“Só desafeto, vida de inseto, imundo”) há a evocação de um sentimento de comunidade e história compartilhada entre negros brasileiros, diaspóricos, e africanos, escravizados no passado por europeus (“Nação sem teto, Angola, Keto, Congo, Soweto / A cor de Eto’o[12], maioria nos gueto”). O décimo segundo verso chama atenção à ausência de reparações após a abolição da escravatura e aos estereótipos relacionados à pessoa negra (“Indenização? Fama de vagabundo”).

A alusão ao Holocausto também é reveladora: “O trabalho liberta, ou não”[13] identifica os pontos em comum entre dois capítulos da história. Da mesma maneira que judeus trabalhavam em campos de concentração até morrerem de exaustão, o mesmo ocorreu com os escravos nos engenhos. Ambos os grupos (e os descendentes de escravos na sociedade atual também estão aqui incluídos) foram prometidos uma liberdade – do projeto de seu apagamento e destruição, de estereótipos, de suas condições precárias – através do trabalho, mas não a obtiveram. Utilizando o exemplo europeu, o verso seguinte reforça que “[c]om essa frase quase que os Nazi, varre os judeu – extinção!”, quase de modo a pedir que a comunidade negra seja cautelosa e não veja trabalho como sinônimo de liberdade. Com isto em mente, o verso “Violência se adapta, um dia ela volta pu cêis” transmite certa esperança e desejo de vingança em ver o opressor (o ‘cêis’ ao qual o eu lírico se dirige) sentindo e passando por tudo aquilo que o oprimido viveu durante anos.

Embora ainda haja o aspecto da historicidade relacionada à negritude (em “Depressão no convés / Há quanto tempo nóiz se fode e tem que rir depois”, por exemplo), os versos das estrofes seguintes tendem a se concentrar mais em aspectos específicos do cotidiano de indivíduos pertencentes a tal grupo. A composição faz referência ao fato de que o ensino superior é de difícil acesso à maioria dos estudantes negros, mesmo que sua existência e realidade no Brasil sejam o assunto de diversos debates e pesquisas acadêmicas nessas instituições (“Tema da faculdade em que não pode por os pés”). Além disso, contradições atuais são trazidas à tona (“Tempo doido onde a KKK, veste Obey[14] (é quente memo)”), e questões como a violência policial (“Aê, nessa equação, chata, polícia mata – Plow!”), perfilamento racial (“Médico salva? Não! Por quê? Cor de ladrão”) e o papel da mídia na cobertura de tais tópicos (“Desacato invenção, maldosa intenção, / Cabulosa inversão, jornal distorção”) são salientados.

A sétima estrofe pode ser dividida em duas partes, considerando seu conteúdo. A primeira, do verso 35 ao 40, trata da violência e dos maus tratos relacionados à exploração sensacionalista de casos e crimes envolvendo pessoas negras por parte da mídia e da imprensa (“Vence o Datena, com luto e audiência”), assim como do apagamento da História Negra, e das culturas africana e afro-brasileira (“Os livro que roubou nosso passado igual alzheimer, e vai ver”). A frase “Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece”, é importante mesmo estando no início da estrofe, pois introduz a temática que será abordada na segunda parte desta, evocando a intensificação da exclusão e agressão a um nível intolerável para um ser humano. Portanto, “Nóiz quer ser dono do circo / Cansamos da vida de palhaço” expressa o desejo de não ser colocado, enquanto pessoa negra, em situações degradantes e humilhantes como as descritas no decorrer da música. O verso enfatiza que se está farto de tudo, e que não se quer mais continuar a viver de tal maneira. À medida que a canção progride, pode-se observar um certo processo de “tomada de consciência” dessas injustiças por parte do eu lírico, e os versos 47 a 51 expressam a determinação em resistir e lutar contra elas. “Cês diz que nosso pau é grande / Espera até ver nosso ódio”, cantados antes do último refrão, afirmam esse sentimento ao fazer uso de um estereótipo associado a homens negros de forma subversiva para afirmar, de uma vez por todas, que ‘já chega’. Este é o momento em que a raiva e a ânsia por rebelião atingem seu pico.

Se, então, o refrão no início de Boa Esperançaenfatiza a impotência, no momento final da música ele carrega em si o peso das estrofes anteriores. Tocado por último, ele passa a denunciar a opressão, e ressalta a rebelião. Especialmente o último verso da letra, agora, adquire a carga de todo este conteúdo, e assim a própria letra pode ser entendida como parte desta bomba-relógio prestes a explodir. Mesmo que expressadas pelo mesmo refrão, existe um claro contraponto entre a impotência inicial e a revolta final.

Prestando atenção ao rap de Emicida, pode-se notar uma progressão que alude às palavras de Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido: “O interesse por humanização leva de uma vez ao reconhecimento da desumanização, não apenas como uma possibilidade ontológica mas como uma realidade histórica” (1974, p. 43).[15] A música faz justamente isto, busca pelo fim da desumanização do indivíduo negro enquanto simultaneamente a posiciona como consequência e processo da História do Brasil.

A canção, no entanto, não é composta apenas por sua letra. Por esta razão, mais dois elementos devem ser considerados em sua análise: as vozes e a linguagem utilizadas na composição.

Embora Emicida e J Ghetto cantem e façam a maior parte do rap na música, antes que ambos iniciem qualquer verso ou rima na gravação, há um coro responsável pela introdução. Em uníssono, tais vozes parecem reproduzir e homenagear em melodia aquilo que negros escravizados cantavam nas plantações enquanto trabalhavam, prática que mais tarde influenciaria fortemente o blues e o jazz. Este coro, que estabelece o ritmo na canção mesmo que ainda não haja percussão alguma tocando, repete-se ao longo da música, não apenas aludindo à referência acima mencionada, mas transmitindo a ideia de um grupo, de um coletivo, definindo o tom da composição como um todo. Além disso, a decisão de não utilizar a linguagem padrão do português brasileiro na letra e, em vez disso, adotar gírias[16] do contexto das favelase bairros negros, reforça tal coletividade e enfatiza que Boa Esperançaé concebida e executada por pessoas nascidas em tais circunstâncias, e pensada em primeiro lugar para ouvintes e fãs na mesma situação.

4.     O vídeo

O trabalho liberta, ou não

(Emicida et al., 2015)

Enquanto a música parece trazer à tona uma perspectiva geral do que é ser negro no Brasil, citando diferentes nuances desta opressão, o videoclipe de Boa Esperançatraz uma abordagem diferente. O vídeo trata de uma narrativa específica e funciona como um mecanismo para completar a tal “generalidade” da letra. Em vez de mostrar Emicida fazendo suas rimas ou apenas ilustrando exatamente as situações trazidas à tona no conteúdo da música, o rapper e os diretores do videoclipe, Katia Lund e João Wainer, optaram por contar uma história. Explorando uma narrativa de resistência, a parte visual do clipe se concentra no contexto de trabalho doméstico no Brasil, um aspecto idiossincrático da realidade social do país. Em decorrência das relações entre o senhor de engenho, branco, e seu escravo, negro, muitos ambientes domiciliares são atualmente compostos por famílias brancas cujos motoristas, faxineiros, cozinheiros e jardineiros são majoritariamente negros[17]. Sendo assim, mesmo que haja um contraste entre a generalidade presente na letra de Boa Esperança e a especificidade do vídeo, ambos se complementam para proferir não só o sentimento de opressão, mas também o de resistência.

Embora a narrativa filmada seja predominantemente ambientada em uma mansão, o vídeo começa mostrando de cima o que parece ser uma área rural, onde seis pessoas correm numa rua não pavimentada com plantas ao seu redor. No meio do primeiro refrão, cantado em coro, o clipe corta para o cenário de seu enredo principal, mostrando uma jovem negra vestida como empregada doméstica enquanto olha a foto de um menino. Os momentos que se seguem estabelecem o contexto para o espectador, apresentando os outros trabalhadores da casa: um jardineiro, um segurança, um manobrista, e mais duas empregadas, uma negra e mais velha e a outra branca. Eles limpam, cozinham e cuidam do cachorro; almoçam com os animais e organizam roupas lavadas e passadas. Em contraste com suas ações estão as duas personagens brancas na tela: uma mulher mais velha, que parece ser a patroa dos trabalhadores, ajuda outra mais jovem a escolher vestidos, e depois, apenas com um olhar de desprezo, comunica desgosto pelas tranças da empregada negra mais nova (que no início observava a foto do menino). Neste momento começa a se desenvolver a tensão que se intensifica à medida que outras micro agressões acontecem no vídeo, como nas cenas em que o manobrista é ignorado por visitas que não lhe entregam as chaves de seus carros adequadamente, e em que um senhor parece assediar a jovem empregada negra.

O clipe, afinal de contas, é uma narrativa de rebelião. Desencadeada pela raiva da mulher branca mais velha contra a recusa por parte da empregada mais moça em não se conformar – ela usa um penteado trançado e batom, o que parece inadmissível considerando o código de vestimenta dos trabalhadores domésticos, além de ser uma possível razão pela qual o homem mais velho se aproxima dela[18]-, a indignação daqueles que prestam serviços na mansão apenas aumenta. A expressão de fúria e revolta traduzida inicialmente em um cuspe na comida que será servida na sala de jantar, desenvolve-se posteriormente no ato de amarrar as visitas com cordas e correntes em um espaço ao ar livre, colocando fogo em suas roupas e tomando a casa e os pertences de seus empregadores para si.

Em relação a esta parte do vídeo, embora ela conte a história específica destes trabalhadores, há um uso de símbolos e iconografia que remetem a eventos históricos e situações atuais frequentemente vividas por pessoas negras. Logo após o manobrista se ajoelhar para pegar as chaves do carro no chão, há um close-up de seu rosto olhando para o interior da mansão, entre as barras do portão (1:57). A imagem não é apenas uma referência à população carcerária brasileira, que é majoritariamente masculina e negra, mas também à sensação de que o corpo negro está preso a uma posição servil, mesmo que a escravidão tenha sido abolida. Quando a rebelião irrompe, e os convidados são amordaçados e amarrados com correntes e cordas, não se pode deixar de pensar na imagem de africanos sendo traficados e acorrentados em navios negreiros; adicionando a isto, a figura de uma criada negra com um chicote referencia o método de tortura usado por senhores brancos em negros escravizados na era colonial (3:58). Após uma enorme fogueira ser acesa, o vídeo corta para uma mulher negra entre as chamas, de olhar feroz no rosto, segurando uma pessoa branca amordaçada (um convidado? uma das pessoas que vivem na mansão?) por uma coleira (5:42): até mesmo o movimento e a posição da câmera, num tilt do chão até seu rosto, reconhecem que ela agora ocupa a posição de poder, de superior, e a pessoa branca, de inferior. Numa inversão de papéis, o indivíduo branco é amordaçado e tratado como um animal, da mesma forma como os escravos eram, a partir do uso de uma máscara não diferente daquelas que negros nas plantações eram forçados a vestir para que não conseguissem falar ou virar a cabeça.

Entre tais cenas, três homens armados (policiais, possivelmente), chegam à mansão, e é a imagem de um deles se aproximando da câmera que se vê por último enquanto a música ainda toca. O espectador ouve nesse momento o som de um tiro, e depois, quatro pessoas em pé no telhado são mostradas, carregando tochas enquanto o que parece ser quatro lençóis de cama com letras escritas neles formam a palavra ‘nóiz’. A imagem pode ser relacionada a vídeos de rebeliões em prisões brasileiras, nas quais indivíduos detidos protestam e se revoltam contra as condições precárias das cadeias, a injustiça do sistema e o encarceramento em massa. Aqui vale lembrar do frame em que o manobrista aparece olhando para dentro da mansão através de barras do portão. Tal perspectiva reflete a condição do trabalho servil e doméstico negro, do Brasil colônia ao atual, como sendo uma prisão da qual pretos e pardos não podem escapar a não ser que se rebelem.

A última parte do vídeo, sem nenhum conteúdo musical, exibe novamente a primeira cena do clipe, mas a partir do ponto onde houve o corte para a narrativa da mansão. Seis indivíduos correm em uma área rural, e a câmera se move num tilt até mostrar a vista aérea da cena, com um rio e os prédios de uma cidade ao fundo. Simultaneamente, a frase “Em memória de Dona Gracinha. 1948-2015”, que será explicada na próxima seção deste texto, pode ser lida na tela e em seguida os créditos começam. Esta última cena pode ser considerada um entrelaçamento do passado e do presente, e sua posição na montagem do clipe (em suas extremidades, como a primeira e última cenas) reforçam isso. Pode-se dizer que as pessoas correndo são alguns dos trabalhadores que conseguiram escapar da rebelião que ocorreu na mansão, e que a visão da fuga assim que Boa Esperança começa poderia ter duas funções: presságio e flashback. Como presságio, a cena faz uma alusão ao que acontecerá no enredo. No entanto, as pessoas correndo no caminho não pavimentado também são uma alusão aos indivíduos escravizados que escapavam das plantações, fartos de sua situação da mesma forma que os trabalhadores domésticos do enredo estão. Assim, como não é possível ver seus rostos e determinar se as pessoas correndo são ou não os empregados domésticos, a cena também poderia ser uma referência histórica. Além disso, posicioná-la no videoclipe como uma espécie de moldura para a narrativa principal que se desdobra na mansão pode funcionar de modo a unir ambos os aspectos mencionados acima: a primeira coisa que o espectador vê o lembra de escravos fugindo dos engenhos e os últimos frames funcionam como um epílogo da rebelião dos jardineiros, empregados domésticos, manobristas e seguranças. Assim, esta parte da montagem traça um paralelo entre o ontem e o hoje.

Além da música sendo tocada como trilha sonora dos acontecimentos no vídeo, há um diálogo de um telefonema entre o segurança e o que parece ser sua patroa, a mulher branca mais velha, e cujo conteúdo será analisado no quinto capítulo desta análise. Adicionando a isso, a cena final com as pessoas correndo após o fim da música é acompanhada de uma colagem de áudios de noticiários televisivos[19],  que são reproduzidos enquanto sirenes tocam ao fundo:

– “Empregadas domésticas de uma mansão se rebelaram e fizeram seus patrões reféns hoje à tarde na zona Sul de São Paulo…”

– “Segundo relatos de vizinhos, a rebelião começou na hora do almoço e se estendeu durante toda a tarde…”

– “Informações preliminares dão conta de que casos simultâneos de rebelião estão ocorrendo em pelo menos 8 estados do país…”   

– “Entre as reivindicações estão mais respeito, dignidade e melhores condições de trabalho…”

– “As empregadas que deram ao motim não foram encontradas pela polícia e estão foragidas”

– “Apesar do susto não há registro de feridos graves…” (Lund & Wainer, 2015a).

A presença de tais frases dentro da narrativa é crucial. Se, até aquele momento, a trama parecia ser uma espécie de vingança dos oprimidos contra o opressor, já que os trabalhadores humilham os patrões e seus convidados cortando seus cabelos, espalhando torta em seus rostos, fumando seus charutos, vestindo suas roupas chiques e beijando uma das mulheres do grupo, a sobreposição de áudios expõe o que está por trás da raiva que desencadeou tal reação: a exigência de “[…] mais respeito, dignidade e melhores condições de trabalho…” (6:22). Como discutirei a seguir, o vídeo e o voice over televisivo, juntamente com a música, destacam que “[…] não haverá direitos sem luta e sem a mobilização do ódio dos oprimidos, principalmente da população negra” (Neto & Adoue, 2016, p. 25).

5.     O audiovisual

Bomba-relógio prestes a estourar

(Emicida et al., 2015)

Tendo considerado a música e o vídeo como aspectos separados, é de extrema importância pensar como ambos se entrelaçam para entender o poder do trabalho de Emicida; questionemos, então, como a música e o vídeo conseguem paralelamente gerar novos sentidos um para o outro.

Embora a canção não esteja diretamente no conteúdo filmado, pois funciona mais como uma trilha sonora da narrativa e não é cantada no clipe, há momentos em que vídeo e composição se enredam, e o espectador é lembrado de que os dois aspectos trabalham juntos em Boa Esperança. A composição não é o único áudio do videoclipe, apesar de não haver muito diálogo. A letra é interrompida quando o segurança pega o telefone e (presumivelmente) conversa com um de seus patrões (4:37); após o final da canção, trechos de notícias, falando de revoltas de empregados domésticos, são reproduzidos; antes da sexta estrofe, apenas a batida do ritmo e o baixo são tocados em volume mais baixo enquanto ouve-se o som da campainha usada para chamar o cozinheiro à sala de jantar (3:00). Além da música, outros sons estão presentes, como o tilintar de copos brindando, vinho sendo servido em taças, as empregadas cuspindo na comida e o fogo crepitando, o que compõe uma espécie de ‘sinfonia de pequenos sons de rebelião’. Estes sons se entrelaçam com a música, criando no plano acústico uma ligação mais direta entre a abordagem mais ampla no conteúdo da letra e a especificidade no enredo do vídeo.

Nas primeiras cenas dentro da mansão, quando o segurança liga seu rádio, há um efeito semelhante: neste momento, o som da canção fica mais abafado, como se viesse do objeto portátil (1:22). Nessa sequência de frames rapidamente cortados, a música é inserida no vídeo, como uma composição ouvida por uma personagem. Isto cria a sensação de que o guarda, ligando a música, continua ouvindo-a durante todo o vídeo, e à medida que toca, ele se torna mais consciente da situação precária em que ele e os outros empregados se encontram. Com isso em mente, suas ações no momento em que ele responde ao interfone podem ser compreendidas como o resultado não só da rebelião dos trabalhadores que ele acompanha através das câmeras de segurança, mas também da influência da letra de Boa Esperança. Ele atende o interfone e diz, sem se demonstrar abalado pelas informações que lhe são dadas do outro lado da linha, “Pronto. Ê laiá… É mesmo, senhora? Elas fizeram isso? Não, a senhora fica boazinha, eu vou… eu vou ajudar a senhora. Pera, eu vou ver o que eu faço, peraí. Oxe! Não, peraí…”. No entanto, o guarda apenas deixa de lado o telefone e continua a observar as câmeras, levando o espectador à conclusão de que ele decidiu não intervir para salvar os patrões e seus convidados. Deste modo, pode-se dizer que ele opta por apoiar a seus colegas de trabalho, e que por causa disso não é ele quem os denuncia para os homens armados que aparecem no final do clipe. Aqui, a escolha de um indivíduo causa impacto sobre o coletivo.

Considerando o fato de que muitos videoclipes mostram os artistas cantando suas composições ou participando como personagens principais da narrativa relatada, a figura do guarda de segurança é ainda mais importante, visto que é interpretado por Emicida. O espectador não o vê cantando a letra, e às vezes ele apenas cantarola a melodia do refrão, o que também realça o papel do indivíduo dentro de um coletivo. É como se seu cantarolar fosse uma das vozes do coro. O rapper tem pouco tempo de tela, e sua presença no vídeo como o segurança é uma forma de afirmar que ele, como homem negro, faz parte desta comunidade farta de sua situação atual; a escolha de colocá-lo neste papel reforça a ideia de que, não fosse ele um músico famoso, Emicida certamente poderia estar hoje exercendo a profissão de segurança, como é o caso de muitos homens negros. Sua aparição nesse papel reitera sua posição de oprimido junto com os outros indivíduos no vídeo.

Pensando desta mesma forma sobre a escolha das atrizes no papel de empregadas domésticas, pode-se perceber uma escolha deliberada no fato de que uma delas é uma mulher branca. Assim, Boa Esperança também enfatiza que a opressão não é apenas uma questão de raça, mas também de classe. Tanto a existência da faxineira branca quanto a da mulher branca que beija o manobrista e parece ter algum tipo de relacionamento amoroso com ele[20], ampliam a crença de que a resistência contra a opressão não precisa ser composta apenas pelos trabalhadores negros explorados, mas também por aliados que de uma forma ou de outra não vivem essa realidade.

Examinando melhor a relação entre som e imagem, pode-se dizer que a montagem também tem grande significado. Certas cenas e cortes em específico têm como objetivo reforçar a letra da música. Quando surge o primeiro momento de tensão, enquanto a patroa olha para as tranças da jovem criada, a linha “Bomba relógio prestes a estourar” é cantada, sugerindo o resultado do acúmulo de micro agressões como aquela: estouro, revolta. Algo similar ocorre durante a sequência de versos “Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece / Vence o Datena, com luto e audiência” em que, respectivamente, se observa a rebelião irromper na sala de jantar (resultado da agressão cotidiana enlouquecedora), e o segurança olhando para as imagens da câmera de vigilância incrédulo e entretido (a audiência, que pelo menos neste contexto não enxerga os acontecimentos de forma sensacionalista, e apoia o que vê em sua tela). Enquanto isso, a revolta dentro da mansão atinge novos patamares, e convidados aparecem amarrados e empregados com chicotes na mão. Quando o último refrão toca, os versos “E os camburão o que são? / Negreiros a retraficar” são ouvidos enquanto os homens armados se aproximam da mansão e dos rebeldes, materializando a possibilidade de tal ‘re-tráfico’ e retaliação e manutenção da posição servil desses trabalhadores domésticos (5:36).

Contemplando a música e o enredo do vídeo, é preciso reconhecer que eles podem ser entendidos como um snap[21] coletivo, gerado pelo acúmulo de episódios de racismo e opressão e pela raiva provocada por isso. Como Grada Kilomba coloca,

[o] racismo cotidiano não é um evento violento na biografia individual, como se acredita – algo que “poderia ter acontecido uma ou duas vezes” – , mas sim o acúmulo de eventos violentos que, ao mesmo tempo, revelam um padrão histórico de abuso racial que envolve não apenas os horrores da violência racista, mas também as memórias coletivas do trauma colonial (2019, p. 215).

A opressão ‘geral’ que a letra expõe, além de sua forma mais ‘específica’ infringida aos corpos dos empregados domésticos no vídeo, atua como pressão sobre a pessoa negra. Como esta é facilmente percebida apenas por aqueles que estão sob a mesma, e não aos que vêm de fora (como seus patrões, ou a elite branca de forma geral), a rebelião – um snap coletivo – parece, de início, ser o princípio de algo quando é, de fato, uma reação, um resultado. “O snap é apenas o começo de algo por causa daquilo que não percebemos” (Ahmed, 2017, p. 189). Daí a metáfora da bomba-relógio prestes a explodir, e o som literal da explosão (ou de um tiro) logo após o último verso de Boa Esperança ser cantado (5:46). Também deve ser dada atenção especial ao uso de ‘nóiz’ na canção e no vídeo, e a um dos anúncios de notícias no final: “Informações preliminares dão conta de que casos simultâneos de rebelião estão ocorrendo em pelo menos 8 estados do país…” (6:15). O snap coletivo é claro, pois não diz respeito apenas à revolta na mansão específica que o espectador vê durante o videoclipe, mas também ao efeito-dominó de outros atos simultâneos de rebelião doméstica. ‘Nóiz’ não são apenas as pessoas que trabalham na casa; ‘nóiz’ são todos aqueles que estão snapping, que estão rompendo com a pressão que aguentaram por tanto tempo.

Outra nuance de coletividade e resistência em Boa Esperançaestá no fato de que a história audiovisual foi criada a partir da colaboração com moradores da Ocupação Mauá[22]e de suas experiências de vida (Lund & Wainer, 2015b). Algumas das pessoas que participaram de tal processo atuaram como os empregados na filmagem e a dedicatória no final do clipe se relaciona também à Ocupação. Dona Gracinha, uma senhora negra que ali habitava, era doméstica quando jovem e foi entrevistada para o desenvolvimento da trama, mas morreu logo depois e não pôde ver o resultado final da obra. Prestar essa homenagem é algo extremamente simbólico: é tanto um reconhecimento de um indivíduo, mas também do legado histórico que a fez viver do modo como demonstram e denunciam o videoclipe e a canção. Houve e ainda há milhares de Donas Gracinhas no Brasil.

Por fim, o título da obra, ‘Boa Esperança’, conclui esta análise. A escolha em nomeá-la desta maneira introduz ironia, assim como referencia história e evoca certa fé na possibilidade de mudança.

A expressão ‘boa esperança’, por si só, é uma redundância: o significado de esperança não carrega uma conotação negativa (‘má esperança’ seria um paradoxo) e, portanto, a adição de ‘boa’ precedendo essa palavra transmite positividade em dobro. A ironia é gerada através do contraste entre isso e a realidade do que é ser negro no Brasil. O refrão, enfatizando desamparo e impotência, escancara tal contradição com o título e intensifica a sensação de não ser ouvido e muito menos defendido. Isto ganha ainda mais ênfase à medida que o contexto histórico é compreendido: navios negreiros, símbolos trágicos da era do tráfico transatlântico, tinham nomes como “Amável Donzela”, “Boa Intenção”, “Caridade” e “Feliz Destino” (Manenti, 2015). “Boa Esperança” é uma referência a isto também, evocando o trauma, a morte e a humilhação que negros viveram ao cruzar o Atlântico, assim como o sadismo desses nomes. Considerando o passado e o presente da comunidade negra, ‘esperança’ é de certa forma uma palavra-gatilho: com o passar das décadas, embora a escravidão tenha sido abolida, o trabalho seja remunerado e indivíduos negros sejam ‘livres’ para fazer o que quiserem, pouco na dinâmica de poder e privilégios mudou. Sendo assim, como poderia realmente haver qualquer sentimento de esperança nesta comunidade até hoje oprimida?

O fim do videoclipe tematiza isso, a partir da imagem das seis pessoas correndo e os anúncios de notícias. “Informações preliminares dão conta de que casos simultâneos de rebelião estão ocorrendo em pelo menos 8 estados do país…” (6:15). Estas falas, colocadas após o coro impotente argumentando que a luta do povo negro e suas realidades quase inalteradas são consideradas sem importância, ecoam um pouco de esperança, por causa da coletividade nesta rebelião doméstica. Pode ser que ela se torne um movimento, uma verdadeira luta de maiores proporções. Espelhando os feitos de seus antepassados fugitivos, “[a]s empregadas que deram ao motim não foram encontradas pela polícia e estão foragidas” (6:26), e assim há fé, embora pouca, de que não serão encontrados e que, portanto, poderia haver um pouco de esperança para os oprimidos.

Paulo Freire oferece um comentário sobre este assunto:

A luta pela humanização, pela emancipação do trabalho, pela superação da alienação, pela afirmação de homens e mulheres como pessoas seria desprovida de significado. Esta luta só é possível porque a desumanização, embora um fato histórico concreto, não é um destino dado, mas o resultado de uma ordem injusta que gera violência nos opressores, o que por sua vez desumaniza os oprimidos.

Visto que é uma distorção de ser mais plenamente humano, mais cedo ou mais tarde ser menos humano leva os oprimidos a lutar contra aqueles que os fizeram assim. […].

Esta é, portanto, a grande tarefa humanística e histórica dos oprimidos: libertar-se a si mesmos e a seus opressores também. (1974, p. 44).[23]

Levando em conta o todo de Boa Esperança, esta parece ser a mensagem transmitida, através de sua forma e conteúdo. Apesar dos acontecimentos históricos, a injustiça não é inquestionável ou um estado definitivo e imutável daqueles que a sofrem; como mostra a obra de Emicida, ecoando a teoria freireana de que “[…] [o]s opressores, que oprimem, exploram e violam em virtude de seu poder, não podem encontrar neste poder a força para liberar tanto os oprimidos quanto a si mesmos. Somente o poder que brota da fraqueza dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos”[24] (Ibid.), a injustiça pode e deve ser combatida por aqueles que padeceram com tanto abuso durante tanto tempo. Chamá-la de ‘boa’ é certamente demais, mas pode sim haver ‘esperança’ afinal de contas[25].

6.     Conclusão

Os livro que roubou nosso passado igual Alzheimer

(Emicida et al., 2015)

Retomando as reflexões de Claudia Rankine sobre raiva, arte e negritude, “a raiva acumulada através da experiência e das lutas cotidianas contra a desumanização que cada pessoa parda ou preta vive simplesmente por causa da cor de sua pele” (2015, p. 24) é algo que aqueles que deparam-se com Boa Esperançapodem certamente compreender. Esta é a raiva que Emicida conheceu toda sua vida; é a sensação que as pessoas entrevistadas da Ocupação Mauáreconhecem rapidamente; pretos e pardos ao longo da História brasileira e empregados domésticos negros e suas famílias já sentiram-na; e eu, como mulher negra, também.

A partir do videoclipe, qualquer espectador também pode distinguir esse tipo de raiva. E isto é porque este sentimento, individual e coletivo, é utilizado não apenas como o motor para escrever e produzir Boa Esperança, mas é a principal presença na obra. Embora na realidade e no conteúdo do trabalho haja o conhecimento que Rankine descreve como aquele que “esclarece e desilude” (Ibid.), o fato, por si só, de o vídeo existir no mundo, inspirando nem que seja a menor esperança entre oprimidos, é já uma reação “a insultos e tentativas de apagamento” pois “simplesmente […] [afirma] presença” (Ibid.). De rebelião, de indignação, e de luta da população negra. Boa Esperança parece gritar que ‘nóiz estamos aqui, e não aguentaremos mais esta opressão’.

Portanto, o videoclipe como um todo é uma performance de resistência e é a própria resistência. Como uma narrativa, como um manifesto, como rap, como uma manifestação cultural da raiva que, em muitos casos, se acumula e vira um snap. Considerando o verso 40, “Os livro que roubou nosso passado igual alzheimer, e vai ver”, pode-se concluir que Boa Esperançatambém resiste à maneira como a história é contada. Os legados e culturas negras, africanas e afro-brasileiras são muitas vezes deixados de fora dos currículos escolares. O que Emicida faz em seu trabalho, e o que ele fez através do rap e do clipe aqui analisados, é exatamente o oposto; embora a situação dos negros seja “Tema da faculdade em que não pode por os pés” – e este comentário pode ser estendido a este trabalho e à posição de exceção em que me encontro, escrevendo-o -, sua plataforma e sua arte são uma forma de acabar com esse apagamento. Em inúmeras tantas nuances, Boa Esperançarepresenta o oprimido combatendo a opressão, enquanto remete às palavras sábias de outra poetisa negra, Audre Lorde:

“E quando nós falamos

temos medo que nossas palavras nunca serão ouvidas

 nem bem-vindas

mas quando estamos em silêncio

nós ainda temos medo.

então é melhor falar

tendo em mente que

não éramos supostas [a] sobreviver.”[26]

(conforme citado em Kilomba, 2019, p. 57).

7. Anexo

  1. (Emicida et al., 2015)

(1) Por mais que você corra irmão

Pra sua guerra vão nem se lixar

Esse é o xis da questão

Já viu eles chorar pela cor do orixá?

(5) E os camburão o que são?

Negreiros a retraficar

Favela ainda é senzala, Jão

Bomba relógio prestes a estourar

O tempero do mar foi lágrima de preto

(10) Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto

Só desafeto, vida de inseto, imundo

Indenização? Fama de vagabundo

Nação sem teto, Angola, Keto, Congo, Soweto

A cor de Eto’o, maioria nos gueto

(15) Monstro sequestro, capta tês, rapta

Violência se adapta, um dia ela volta pu cêis

Tipo campos de concentração, prantos em vão

Quis vida digna, estigma, indignação

O trabalho liberta, ou não

(20) Com essa frase quase que os Nazi, varre os judeu – extinção!

Depressão no convés

Há quanto tempo nóiz se fode e tem que rir depois

Pique Jackass, mistério tipo lago Ness, sério és

Tema da faculdade em que não pode por os pés

(25) Vocês sabem, eu sei

Que até Bin Laden é made in USA

Tempo doido onde a KKK, veste Obey (é quente memo)

Pode olhar num falei?

Aê, nessa equação, chata, polícia mata – Plow!

(30) Médico salva? Não! Por quê? Cor de ladrão

Desacato invenção, maldosa intenção,

Cabulosa inversão, jornal distorção

Meu sangue na mão dos radical cristão

Transcendental questão, não choca opinião

(35) Silêncio e cara no chão, conhece?

Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece

Vence o Datena, com luto e audiência

Cura baixa escolaridade com auto de resistência

Pois na era Cyber, cêis vai ler

(40) Os livro que roubou nosso passado igual alzheimer, e vai ver

Que eu faço igual Burkina Faso

Nóiz quer ser dono do circo

Cansamos da vida de palhaço

É tipo Moisés e os Hebreus, pés no breu

(45) Onde o inimigo é quem decide quando ofendeu

(Cê é loco meu!)

No veneno igual água e sódio (vai, vai, vai)

Vai vendo sem custódio,

Aguarde cenas no próximo episódio

(50) Cês diz que nosso pau é grande

Espera até ver nosso ódio

Por mais que você corra irmão

Pra sua guerra vão nem se lixar

Esse é o xis da questão

(55) Já viu eles chorar pela cor do orixá?

E os camburão o que são?

Negreiros a retraficar

Favela ainda é senzala, Jão

Bomba relógio prestes a estourar

  • Diálogo: chamada de interfone com o segurança

SEGURANÇA – Pronto. Ê laiá… É mesmo, senhora? Elas fizeram isso? Não, a senhora fica boazinha, eu vou… eu vou ajudar a senhora. Pera, eu vou ver o que eu faço, peraí. Oxe! Não, peraí…

  • Áudios de noticiários televisivos

“Empregadas domésticas de uma mansão se rebelaram e fizeram seus patrões de reféns hoje à tarde na zona Sul de São Paulo…”

 “Segundo relatos de vizinhos, a rebelião começou na hora do almoço e se estendeu durante toda a tarde…”

“Informações preliminares dão conta de que casos simultâneos estão ocorrendo em oito estados do país…”

 “Entre as reivindicações estão mais respeito, dignidade e melhores condições de trabalho…”

“As empregadas que deram origem ao motim não foram encontradas pela polícia e estão foragidas…”

“Apesar do susto, não há registro de feridos graves…”

8. Bibliografia

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Youngman, H. (2011). ART THOUGHTZ: How To Be A Successful Black Artist. ART THOUGHTZ. Youtube.

9.     Notas


[i] Todas as citações neste trabalho são traduções minhas, do inglês. Quando este não é o caso, o tradutor está identificado.

[ii] A letra completa de Boa Esperança pode ser encontrada após o texto deste trabalho, no anexo. Os versos foram numerados para melhor poder referenciá-los. Na mesma seção, pode-se também encontrar todas as falas presentes no clipe.


[1] Aqui traduzi a expressão de cunho político person of color para ‘pessoa de cor’ ao invés de ‘pessoa não-branca’ com base na discussão proposta por tatiana nascimento (2017). A autora compreende o emprego de ‘de cor’ como um processo, na teoria feminista brasileira, “de ressignificação e retomada do que era usado pejorativamente” (Ibid., p. 139) para se referir a pessoas negras no passado. “Não-branco”, além de não ter tal caráter político, acaba por centralizar a branquitude quando o objetivo é justamente não fazê-lo durante discussões sobre vivências que não são contempladas por ela.

[2] O termo vem do inglês microaggression, cunhado nos anos 70 pelo psiquiatra americano Chester M. Pierce. Para uma análise d termo no contexto de raça, gênero e sexualidade, ver Microaggressions in everyday life: race, gender, and sexual orientation, de Derald Wing Sue (2010).

[3] Em inglês, o trabalho referido se chama ART THOUGHTZ: How To Be A Successful Black Artist (“ART THOUGHTZ: Como ser um artista negro de sucesso”) e pode ser encontrado em: https://www.youtube.com/watch?v=3L_NnX8oj-g.

[4] “[t]he commodified anger his video advocates rests lightly on the surface for spectacle’s sake” (Rankine, 2015, p. 23).

[5] No texto original, Rankine usa a expressão “brown or black”. “Brown”, nos EUA, não é exatamente equivalente a “pardo” no Brasil, embora seja quase sempre traduzido deste modo. Brown é utilizado para designar indivíduos de origem latino-americana, do Oriente Médio, ou do Sudeste Asiático, e dependendo do contexto pode ser tanto pejorativo quanto uma autodeclaração. Pardo, no Brasil, é utilizado para designar tanto indígenas quanto descendentes da miscigenação entre brancos e pretos, brancos e indígenas, e indígenas e pretos. Para mais informações sobre autodenominações e raça no Brasil, ver (Petruccelli & Saboia, 2013).

[6] “On the bridge between this sellable anger and “the artist” resides, at times, an actual anger. Youngman in his video doesn’t address this type of anger: the anger built up through experience and the quotidian struggles against dehumanization every brown or black person lives simply because of skin color. This other kind of anger in time can prevent, rather than sponsor, the production of anything except loneliness.

You begin to think, maybe erroneously, that this other kind of anger is really a type of knowledge: the type that both clarifies and disappoints. It responds to insult and attempted erasure simply by asserting presence, and the energy required to present, to react, to assert is accompanied by visceral disappointment: a disappointment in the sense that no amount of visibility will alter the ways in which one is perceived” (Rankine, 2015, p. 24).

[7] O uso dos termos “negro(a)” e “negritude” ao longo deste trabalho considera o emprego dos mesmos pelo IBGE, que compreende como negras as pessoas que se autodenominam pardas ou pretas.

[8] “[m]aintaining public comfort requires that certain bodies ‘go along with it’. To refuse to go along with it, to refuse the place in which you are placed, is to be seen as trouble, as causing discomfort for others” (Ahmed, 2010, p. 68-69).

[9] Otherness é o conceito fenomenológico que exprime o estado oposto ao Self, ressaltando as circunstâncias de indivíduos e/ou grupos considerados ‘diferentes’ em relação ao que se tem como norma na sociedade (em contextos de raça, gênero, cultura, cidadania, etc). Campos acadêmicos como teoria crítica, estudos feministas e teoria pós-colonial fazem uso de tal concepção,refletindo sobre a posição daquele que é considerado “Outro” dentro de sistemas patriarcais, imperialistas e hegemônicos.

[10] O racismo é hoje um crime no Brasil, de acordo com a Lei nº 7.716, de 5 de Janeiro de 1989, pois não se pode discriminar por causa de raça. No entanto, ideologias racistas ainda são muito presentes na forma como as pessoas pensam e se expressam sobre cultura, políticas públicas e relações de classe.

[11] Orixá é uma divindade da fé iorubá da África Ocidental, que foi trazida ao Brasil pelos escravos e, em contato com o catolicismo, gerou a religião afro-brasileira do Candomblé, praticada hoje em dia em muitas comunidades negras.

[12] Samuel Eto’o é um jogador de futebol camaronês. Hoje aposentado, é considerando um dos melhores atacantes do mundo e foi quatro vezes vencedor do título de melhor jogador africano do ano.

[13] O verso faz referência ao slogan nazista Arbeit macht frei, em português “O trabalho liberta”, que hoje ainda pode ser visto nos portões de campos de concentração como o de Auschwitz, na Polônia.

[14] OBEY Clothing é uma marca de roupa americana cujo fundador, Shepard Fairey, é conhecido por seu ativismo contra opressões, bem como por ter projetado o famoso cartaz de campanha presidencial de Barack Obama, em que o rosto do ex-presidente é acompanhado da palavra “HOPE”, inglês para “esperança”.

[15] “Concern for humanization leads at once to the recognition of dehumanization, not only as an ontological possibility but as an historical reality.”(Freire, 1974, p. 43).

[16] Um exemplo disso é a palavra nóiz ao invés do pronome ‘nós’, usada em “Nóiz quer ser dono do circo”. A grafia e o uso de nóiz representa a forma como algumas pessoas a pronunciam. No trabalho de Emicida, ela é comumente empregada como referência aos indivíduos cuja realidade de vida é denunciada pelo artista, colocando-o também como parte deste coletivo (já que nóiz é utilizado como se fosse a primeira pessoa do plural). Nóiz, portanto,não é um grupo qualquer falando de si mesmo; nóiz se torna o pronome dos excluídos e oprimidos.

[17] 61,8% dos trabalhadores domésticos no Brasil são pretos e pardos (IBGE, 2006).

[18] Tal leitura da situação, feita pela patroa das empregadas domésticas, atribui a culpa do assédio à aparência da mulher negra ao invés de reconhecer a lógica de sexualização e a dinâmica de poder que levou o homem mais velho a concluir que poderia agir da maneira que agiu em relação à empregada.

[19] Não está claro se os áudios utilizados foram retirados de transmissões reais ou se foram criados para o videoclipe.

[20] A posição desta jovem mulher dentro da elite também é reveladora, já que considerando raça e classe é a opressora, mas escolhe estar do lado dos oprimidos.

[21] De acordo com a teórica feminista Sara Ahmed, momentos de snap são momentos de ruptura, de quebra com o status quo. Isto ocorre porque indivíduos recusam-se a se alinharem com expectativas e posicionamentos condizentes ao sistema patriarcal branco e heterossexual. O snap é ‘a gota d’água’, o início de uma rebelião contra toda a pressão colocada em cima de um corpo (de cor, e/ou feminino, e/ou queer) para que este compactue com valores que apenas o desumanizam e reprimem (Ahmed, 2017, p. 189).

[22] A Ocupação Mauá é um movimento e a comunidade de habitantes de um prédio no centro de São Paulo desde 2007, que hoje é ocupado por cerca de 1000 pessoas (“A OCUPAÇÃO,”).

[23]“The struggle for humanization, for the emancipation of labor, for the overcoming of alienation, for the affirmation of men and women as persons would be meaningless. This struggle is possible only because dehumanization, although a concrete historical fact, is not a given destiny but the result of an unjust order that engenders violence in the oppressors, which in turn dehumanizes the oppressed.

Because it is a distortion of being more fully human, sooner or later being less human leads the oppressed to struggle against those who made them so.  […].

This, then, is the great humanistic and historical task of the oppressed: to liberate themselves and their oppressors as well.” (Freire, 1974, p. 44).

[24] “[…] The oppressors, who oppress, exploit, and rape by virtue of their power, cannot find in this power the strength to liberate either the oppressed or themselves. Only power that springs from the weakness of the oppressed will be sufficiently strong to free both.” (Freire, 1974, p. 44).

[25] Gostaria de ressaltar o uso da palavra ‘pode’ nesta frase. Como não há uma resposta conclusiva sobre o que aconteceu com as personagens retratadas no vídeo musical (foram pegas e presas? Ocorreram mais rebeliões? Para onde foram as pessoas em fuga?), pode-se assumir a possibilidade de seus destinos serem melhorados, mas não ter certeza disso.

[26] “And when we speak

we are afraid our words will not be heard

nor welcomed

but when we are silent

we are still afraid.

So it is better to speak

remembering

we were never meant to survive.” (conforme citado em Kilomba, 2010, p. 31)